quinta-feira, 9 de abril de 2009

Olhar criminoso









O ambiente musical da Alemanha antes da Primeira Grande Guerra era de extrema beligerância e violência. A cena se dividia entre os partidários de Brahms, como último representante da real música erudita e os partidários de Wagner e Liszt, deuses da música moderna. Era comum os concertos terminarem com a balbúrdia da turma contrária e não raras vezes confrontos físicos entre os partidários tinham lugar. Wagner era considerado o introdutor de uma nova forma de compor, densa, pesada, violenta. Baseada em temas nórdicos como a lenda de Sigfried ou o Valhalla, suas óperas eram recheadas de cenas fortes e pesadas. Liszt foi o primeiro "rock star". As mulheres se estapeavam pelas cordas de seu piano, que ele lançava à platéia ao final de suas apresentações, como os guitarristas jogam hoje palhetas ao público. Essas cordas viravam adornos de cabelo e pulseiras, que eram guardadas como verdadeiras relíquias. Franz Strauss, discípulo de Brahms, detestava Wagner, mas não conseguiu impedir a conversão de seu filho Richard, para as fileiras dos wagnerianos. Richard Strauss não só se tornou um grande compositor, se tornou o maior compositor europeu de sua época. Levou a violência e o drama wagnerianos a lugares nunca pensados. Seus poemas sinfônicos eram agressivos, caóticos, despertavam sensações violentas no público. Influenciado pela leitura de Nietzsche, compôs um poema sifônico baseado na obra mais importante do filósofo de Röecken, Also Sprach Zarathustra (Assim Falou Zaratustra). Uma música épica, vibrante, essencialmente violenta e estimulante. Em sua ópera Electra exigiu cordeiros reais para a cena de sacrifício. Em Salomé provocou náuseas na platéia, sedenta de fortes sensações, ao usar sangue animal que escorria pelo palco, na cena em que Salomé recebe a cabeça de João Batista em uma bandeija de prata. A música de Strauss era pensada para causar incômodo, náusea. Representava a grandiloquencia de sua época, a do apogeu do Estado Prussiano. Um Estado que acabaria se perdendo em seu próprio torvelinho de violência.




Em 8 de dezembro de 1980, John Lennon foi assassinado na frente do Edifício Dakota, onde morava em Nova York. Mark Chapman, o assassino, havia pedido a Lennon um autógrafo na capa do LP Double Fantasy pouco tempo antes. Baleou o beatle e ficou sentado, lendo O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger, que segundo ele, trazia mensagens que o mandavam matar o músico inglês. Lennon morreu a caminho do hospital, devido a perda de sangue. Quando Chapman foi preso, pediu desculpas aos policiais pelo "transtorno causado". No julgamento disse que a dissolução dos Beatles foi um dos motivos para o assassinato.




Vinte e quatro anos depois, no mesmo dia 8 de dezembro, o guitarrista Dimebag "Diamond" Darrell, foi assassinado com três tiros na cabeça em pleno palco, enquanto se apresentava com sua banda, o Damageplan. Mais três pessoas da equipe da banda foram mortas. O assassino, Nathan Gale, foi morto por um policial. Subiu ao palco gritando algo sobre o PanterA, banda que Darrell havia fundado e que terminou devido a desentendimentos internos, o que sugere que a motivação do crime foi o fim da banda. Parte da mídia acusou Darrell de incitar esse tipo de atitude com sua música, violenta e pesada. Pais e educadores que sempre se mostraram avessos a esse tipo de arte ressucitaram todo tipo de preconceito. Darrell foi chamado de racista, delinguente e nazista em canais conservadores de tv. Como se fosse um suicídio, a morte do guitarrista passou a ser sua responsabilidade.




Na época de Strauss, a Alemanha se arvorava no direito de mando do mundo. Exaltava sua superioridade moral e intelectual sobre toda a Europa. A música dessa época era um reflexo disso. Exaltava as qualidades guerreiras do povo alemão, herdeiro do racionalismo clássico greco-romano. Cantava odes à virtude e nobreza do povo alemão. O Estado Prussiano do jovem Kaiser, belicoso e teimoso, que acabaria desaguando na Primeira Guerra Mundial.




Quando Lennon foi morto o mundo estava mudando. A guerra fria estava próxima do fim, e naquele tempo já na passava de uma gripe. A geração que ali começava estava descrente e desencantada com as promessas de paz feitas pelas gerações anteriores e, com o sucesso americano, via na corrida armamentista a única forma de garantir que guerras não acontecessem. O consumismo e a decadência se tornaram a marca dos países civilizados enquanto os subdesenvolvidos amargavam recordes de poluição, desemprego e violência. A paz e o amor que Lennon cantara não existiam mais. Ele era um sábio obsoleto em uma época que se desenhava tão indecente. Chapman sabia disso.




Poucos anos antes da morte de Darrell, dois terroristas lançaram aviões de passageiros contra o World Trade Center, matando milhares de inocentes. Em represália os EUA destruíram o Afeganistão e invadiram o Iraque. Todos os laços com a tradição e os pontos de referência morais antigos foram sendo questionados e abandonados. O mundo, devido a tecnologia da informação, havia se tornando violentamente menor e mais manipulável. O consumismo e a indústria cultural atingiram níveis que beiram a indecência. A geração oitenta, desencantada com o mundo, deu lugar a uma geração mais apática, individualista e narcísica, devorada pelo próprio vazio. Não é a toa que o assassinato de Darrell parece uma chacina violenta e irracional enquanto o de Lennon se reveste de um véu místico e poético.




O mundo em que Darrell morreu foi um mundo que aceitou a violência como sua verdade e sua linguagem. A música de Darrell, como de muitos músicos do mesmo estilo, serve como uma catarse, uma válvula de escape desse mundo violento. Toda arte representa sua época, seu contexto, e assim é com a música de Darrell e todo o Heavy Metal. Culpá-lo por seu assassinato é pensar como o assassino, é perpetuar a violência, justificá-la. É matar Dimebag uma segunda vez.